O
Terceiro Segredo e sua interpretao firmada pelo Vaticano
Texto original do "3
Segredo" de Ftima segundo a redao feita pela Irm Lcia na "Terceira Memria", de 31 de Agosto de 1941, destinada ao Bispo de Leiria-Ftima
(conforme texto original)
Terei para isso que falar algo do segredo e responder ao primeiro ponto de interrogao. O que o segredo?
Parece-me que o posso dizer, pois que do Cu tenho j a licena. Os representantes de Deus na terra, tm-me autorizado a isso vrias vezes, e em vrias cartas, uma das quais, julgo que conserva V. Ex.cia Rev.ma do Senhor Padre Jos Bernardo Gonalves, na em que me manda escrever ao Santo Padre. Um dos pontos que me indica a revelao do segredo. Algo disse, mas para no alongar mais esse escrito que devia ser breve, limitei-me ao indispensvel, deixando a Deus a oportunidade d'um momento mais favorvel.
Expus j no segundo escrito a dvida que de 13 de Junho a 13 de Julho me atormentou e que n'essa apario tudo se desvaneceu.
Bem o segredo consta de trs coisas distintas, duas das quais vou revelar. A primeira foi pois a vista do inferno!
Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fgo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em sse fgo os
demnios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou
bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das
fagulhas em os grandes incndios sem peso nem equilbrio, entre gritos e gemidos de dr e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os
demnios destinguiam-se por formas horrveis e ascrosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graas nossa ba Me do Cu; que antes nos tinha prevenido com a
promessa de nos levar para o Cu (na primeira apario) se assim no fosse, creio que teramos morrido de susto e pavor.
Em seguida, levantamos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e tristeza: - Vistes o inferno, para onde vo as almas dos pobres pecadores, para as salvar, Deus quer
estabelecer no mundo a devoo a meu Imaculado Corao. Se fizerem o que eu disser salvar-se-o muitas almas e tero paz. A guerra vai acabar, mas se no deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI comear outra peor. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que o grande sinal que Deus vos d de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguies Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagrao da Rssia a meu Imaculado Corao e a comunho reparadora nos primeiros sbados. Se atenderem a meus pedidos, a Rssia se converter e tero paz, se no, espalhar seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguies Igreja, os bons sero martirizados, o Santo Padre ter muito que sufrer, vrias naes sero aniquiladas, por fim o meu Imaculado Corao triunfar. O Santo Padre consagrar-me- a Rssia, que se converter, e ser consedido ao mundo algum tempo de paz.
TEXTO ORIGINAL DA TERCEIRA PARTE DO " SEGREDO"
" J.M.J.
A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Ftima.
Escrevo em acto de obedincia a Vs Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santssima Me.
Depois das duas partes que j expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fgo em a mo esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mo direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mo direita para a terra, com voz forte disse: Penitncia, Penitncia, Penitncia! E vimos n'uma luz emensa que Deus: "algo semelhante a como se vem as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Varios outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar a, atravessou uma grande cidade meia em runas, e meio trmulo com andar vacilante, acabrunhado de dr e pena, ia orando pelas almas dos cadveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos ps da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trs outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e posies. Sob os dois braos da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mo, n'les recolhiam o sangue dos Martires e com le regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944 ".
Comentrio
Teolgico do "3 Segredo" de Ftima pela Santa S
Quem l com ateno o texto do chamado terceiro " segredo " de Ftima, que depois de longo tempo, por disposio do Santo Padre, aqui publicado integralmente, ficar presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulaes que foram feitas. No revelado nenhum grande mistrio; o vu do futuro no rasgado. Vemos a Igreja dos mrtires deste sculo que est para findar, representada atravs duma cena descrita numa linguagem simblica de difcil decifrao. isto o que a Me do Senhor queria comunicar cristandade, humanidade num tempo de grandes problemas e angstias? Serve-nos de ajuda no incio do novo milnio? Ou no sero talvez apenas projeces do mundo interior de crianas, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que ameaavam o seu tempo? Como devemos entender a viso, o que pensar dela?
Revelao pblica e revelaes privadas - o seu lugar teolgico
Antes de encetar uma tentativa de interpretao, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na comunicao que o Cardeal Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebrao Eucarstica presidida pelo Santo Padre em Ftima, necessrio dar alguns esclarecimentos bsicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser compreendidos no mbito da vida de f fenmenos como o de Ftima. A doutrina da Igreja distingue " revelao pblica " e " revelaes privadas "; entre as duas realidades existe uma diferena essencial, e no apenas de grau. A noo " revelao pblica " designa a aco reveladora de Deus que se destina humanidade inteira e est expressa literariamente nas duas partes da Bblia: o Antigo e o Novo Testamento. Chama-se " revelao ", porque nela Deus Se foi dando a conhecer progressivamente aos homens, at ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em Si prprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. No se trata, portanto, de comunicaes intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem; naturalmente nesse processo, depois aparecem tambm contedos que tm a ver com a inteligncia e a compreenso do mistrio de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte, tambm a razo, mas no s ela. Uma vez que Deus um s, tambm a histria que Ele vive com a humanidade nica, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreio de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelao ficou concluda com a realizao do mistrio de Cristo, expresso no Novo Testamento.
O Catecismo da Igreja Catlica, para explicar este carcter definitivo e pleno da revelao, cita o seguinte texto de S. Joo da Cruz: " Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que a sua Palavra - e no tem outra -, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma s vez nesta Palavra nica (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma viso ou revelao, no s cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por no pr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade " (CIC, n. 65; S. Joo da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a nica revelao de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluda com Cristo e o testemunho que d'Ele nos do os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento nico que a histria sagrada e a palavra da Bblia, que garante e interpreta tal acontecimento, mas no significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma estril repetio. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Catlica: " No entanto, apesar de a Revelao ter acabado, no quer dizer que esteja completamente explicitada. E est reservado f crist apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos sculos " (n. 66). Estes dois aspectos - o vnculo com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua compreenso - esto optimamente ilustrados nos discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos discpulos: " Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas no as podeis suportar agora. Quando vier o Esprito da Verdade, Ele guiar-vos- para a verdade total, porque no falar de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-, porque h-de receber do que meu, para vo-lo anunciar " (Jo 16, 12-14). Por um lado, o Esprito serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade no se podia alcanar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplido e profundidade da f crist, e que tal que no estar concluda jamais. Por outro lado, esse acto de guiar " receber " do tesouro do prprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurvel se manifesta nesta conduo por obra do Esprito. A propsito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa Gregrio Magno: " As palavras divinas crescem com quem as l " (CIC, n. 94; S. Gregrio Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7, 8). O Conclio Vaticano II indica trs caminhos essenciais, atravs dos quais o Esprito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o " crescimento da Palavra ": realiza-se por meio da meditao e estudo dos fiis, por meio da ntima inteligncia que experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregao daqueles " que, com a sucesso do episcopado, receberam o carisma da verdade " (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possvel compreender correctamente o conceito de " revelao privada ", que se aplica a todas as vises e revelaes verificadas depois da concluso do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Ftima. Ouamos o que diz o Catecismo da Igreja Catlica sobre isto tambm: " No decurso dos sculos tem havido revelaes ditas "privadas", algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel no (...) "completar" a Revelao definitiva de Cristo, mas ajudar a viv-la mais plenamente numa determinada poca da histria " (n. 67). Isto deixa claro duas coisas:
1. A autoridade das revelaes privadas essencialmente diversa da nica revelao pblica: esta exige a nossa f; de facto, nela, o prprio Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediao da comunidade viva da Igreja. A f em Deus e na sua Palavra distinta de qualquer outra f, crena, opinio humana. A certeza de que Deus que fala, cria em mim a segurana de encontrar a prpria verdade; uma certeza assim no se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelao privada um auxlio para esta f, e manifesta-se credvel precisamente porque faz apelo nica revelao pblica. O Cardeal Prspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal propsito num tratado clssico, que se tornou normativo a propsito das beatificaes e canonizaes: " A tais revelaes aprovadas no devida uma adeso de f catlica; nem isso possvel. Estas revelaes requerem, antes, uma adeso de f humana ditada pelas regras da prudncia, que no-las apresentam como provveis e religiosamente credveis ". O telogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matria, afirma sinteticamente que a aprovao eclesial duma revelao privada contm trs elementos: que a respectiva mensagem no contm nada em contraste com a f e os bons costumes, que lcito torn-la pblica, e que os fiis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adeso [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una discussione, em: La Civilt Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal mensagem pode ser um vlido auxlio para compreender e viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso, no se deve transcurar. uma ajuda que oferecida, mas no obrigatrio fazer uso dela.
Assim, o critrio para medir a verdade e o valor duma revelao privada a sua orientao para o prprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autnoma ou at se faz passar por outro desgnio de salvao, melhor e mais importante que o Evangelho, ento ela certamente no provm do Esprito Santo, que nos guia no mbito do Evangelho e no fora dele. Isto no exclui que uma revelao privada realce novos aspectos, faa surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a f, a esperana e a caridade, que so, para todos, o caminho permanente da salvao. Podemos acrescentar que frequentemente as revelaes privadas provm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas. Isto no exclui que aquelas tenham influncia tambm na prpria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Corao de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relao entre liturgia e piedade popular, est delineada a relao entre revelao pblica e revelaes privadas: a liturgia o critrio, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa que a f cria razes no corao dos diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular a primeira e fundamental forma de " inculturao " da f, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicaes da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do corao.
Desta forma, passmos j das especificaes mais negativas, e que eram primariamente necessrias, definio positiva das revelaes privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual a sua categoria teolgica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que tambm o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicao. L, diz o Apstolo: " No extingais o Esprito, no desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom " (5, 19-21). Em todo o tempo dado Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de ser examinado, no pode ser desprezado. A este propsito, preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bblia, no significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razo, que deseja rasgar o vu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigncia e indicao para o presente. Neste caso, a predio do futuro tem uma importncia secundria; o essencial a actualizao da nica revelao, que me diz respeito profundamente: a palavra proftica ora advertncia ora consolao, ou ento as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noo " sinais do tempo ", redescoberta pelo Vaticano II: " Sabeis interpretar o aspecto da terra e do cu; como que no sabeis interpretar o tempo presente? " (Lc 12, 56). Por " sinais do tempo ", nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu prprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo luz da f significa reconhecer a presena de Cristo em cada perodo de tempo. Nas revelaes privadas reconhecidas pela Igreja - e portanto na de Ftima -, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na f a justa resposta para os mesmos.
A estrutura antropolgica das revelaes privadas
Tendo ns procurado, com estas reflexes, determinar o lugar teolgico das revelaes privadas, devemos agora, ainda antes de nos lanarmos numa interpretao da mensagem de Ftima, esclarecer, embora brevemente, o seu carcter antropolgico (psicolgico). A antropologia teolgica distingue, neste mbito, trs formas de percepo ou " viso ": a viso pelos sentidos, ou seja, a percepo externa corprea; a percepo interior; e a viso espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis). claro que, nas vises de Lourdes, Ftima, etc, no se trata da percepo externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas no se encontram fora no espao circundante, como est l, por exemplo, uma rvore ou uma casa. Isto bem evidente, por exemplo, no caso da viso do inferno (descrita na primeira parte do " segredo " de Ftima) ou ento na viso descrita na terceira parte do " segredo ", mas pode-se facilmente comprovar tambm noutras vises, sobretudo porque no eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos " videntes ". De igual modo, claro que no se trata duma " viso " intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da mstica. Trata-se, portanto, da categoria intermdia, a percepo interior que, para o vidente, tem uma fora de presena tal que equivale manifestao externa sensvel.
Este ver interiormente no significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expresso da imaginao subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que est para alm do sensvel, tornando-a capaz de ver o no-sensvel, o no-visvel aos sentidos: uma viso atravs dos " sentidos internos ". Trata-se de verdadeiros " objectos " que tocam a alma, embora no pertenam ao mundo sensvel que nos habitual. Por isso, exige-se uma vigilncia interior do corao que, na maior parte do tempo, no possumos por causa da forte presso das realidades externas e das imagens e preocupaes que enchem a alma. A pessoa levada para alm da pura exterioridade, onde tocada por dimenses mais profundas da realidade que se lhe tornam visveis. Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatrios preferidos de tais aparies sejam precisamente as crianas: a sua alma ainda est pouco alterada, e quase intacta a sua capacidade interior de percepo. " Da boca dos pequeninos e das crianas de peito recebeste louvor ": esta foi a resposta de Jesus - servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) - crtica dos sumos sacerdotes e ancios, que achavam inoportuno o grito hossana das crianas (Mt 21, 16).
Como dissemos, a " viso interior " no fantasia, mas uma verdadeira e prpria maneira de verificao. F-lo, porm, com as limitaes que lhe so prprias. Se, na viso exterior, j interfere o elemento subjectivo, isto , no vemos o objecto puro mas este chega-nos atravs do filtro dos nossos sentidos que tm de operar um processo de traduo; na viso interior, isso ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito, o vidente, tem uma influncia ainda mais forte; v segundo as prprias capacidades concretas, com as modalidades de representao e conhecimento que lhe so acessveis. Na viso interior, h, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de traduo, desempenhando o sujeito uma parte essencial na formao da imagem daquilo que aparece. A imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais vises no so em caso algum a " fotografia " pura e simples do Alm, mas trazem consigo tambm as possibilidades e limitaes do sujeito que as apreende.
Isto patente em todas as grandes vises dos Santos; naturalmente vale tambm para as vises dos pastorinhos de Ftima. As imagens por eles delineadas no so de modo algum mera expresso da sua fantasia, mas fruto duma percepo real de origem superior e ntima; nem se ho-de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do vu do Alm, aparecendo o Cu na sua essencialidade pura, como esperamos v-lo na unio definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as imagens so uma sntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto , das crianas. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens destas vises uma linguagem simblica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: " No descrevem de forma fotogrfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucesso e durao no especificadas ". Esta sobreposio de tempos e espaos numa nica imagem tpica de tais vises, que, na sua maioria, s podem ser decifradas a posteriori. E no necessrio que cada elemento da viso tenha de possuir uma correspondncia histrica concreta. O que conta a viso como um todo, e a partir do conjunto das imagens que se devem compreender os detalhes. O que efectivamente constitui o centro duma imagem s pode ser desvendado, em ltima anlise, a partir do que o centro absoluto da " profecia " crist: o centro o ponto onde a viso se torna apelo e indicao da vontade de Deus.
Uma tentativa de interpretao do " segredo " de Ftima
A primeira e a segunda parte do " segredo " de Ftima foram j discutidas to amplamente por especficas publicaes, que no necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas chamar brevemente a ateno para o ponto mais significativo. Os pastorinhos experimentaram, durante um instante terrvel, uma viso do inferno. Viram a queda das "almas dos pobres pecadores ". Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para " salv-las " - para mostrar um caminho de salvao. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que diz: " Estais certos de obter, como prmio da vossa f, a salvao das almas " (1, 9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, indicado de modo surpreendente para pessoas originrias do ambiente cultural anglo-saxnico e germnico - a devoo ao Imaculado Corao de Maria. Para compreender isto, deveria bastar uma breve explicao. O termo " corao ", na linguagem da Bblia, significa o centro da existncia humana, uma confluncia da razo, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientao interior. O " corao imaculado " , segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um corao que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, " v a Deus ". Portanto, " devoo " ao Imaculado Corao de Maria aproximar-se desta atitude do corao, na qual o fiat - " seja feita a vossa vontade " - se torna o centro conformador de toda a existncia. Se porventura algum objectasse que no se deve interpor um ser humano entre ns e Cristo, lembre-se de que Paulo no tem medo de dizer s suas comunidades: " Imitai-me " (cf. 1 Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2 Tes 3, 7.9). No Apstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos ns aprender sempre melhor do que com a Me do Senhor?
Chegamos assim finalmente terceira parte do " segredo " de Ftima, publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentao anterior, a interpretao dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente Irm Lcia. A tal propsito, ela comeou por observar que lhe foi dada a viso, mas no a sua interpretao. A interpretao, dizia, no compete ao vidente, mas Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irm Lcia disse que tal interpretao corresponde quilo que ela mesma tinha sentido e que, pela sua parte, reconhecia essa interpretao como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento referida interpretao, partindo dos critrios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tnhamos indentificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do " segredo ", a frase " salvar as almas ", assim agora a palavra-chave desta parte do " segredo " o trplice grito: " Penitncia, Penitncia, Penitncia! " Volta-nos ao pensamento o incio do Evangelho: " Pnitemini et credite evangelio " (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgncia da penitncia, da converso, da f. Tal a resposta justa a uma poca histrica caracterizada por grandes perigos, que sero delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma recordao pessoal: num colquio que a Irm Lcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objectivo de todas as aparies era fazer crescer sempre mais na f, na esperana e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo esquerda da Me de Deus lembra imagens anlogas do Apocalipse: ele representa a ameaa do juzo que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje j no aparece de forma alguma como pura fantasia: o prprio homem preparou, com suas invenes, a espada de fogo. Em seguida, a viso mostra a fora que se contrape ao poder da destruio: o brilho da Me de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo penitncia. Deste modo, sublinhada a importncia da liberdade do homem: o futuro no est de forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos no , absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual j nada se poderia mudar. Na realidade, toda a viso acontece s para chamar em campo a liberdade e orient-la numa direco positiva. O sentido da viso no , portanto, o de mostrar um filme sobre o futuro, j fixo irremediavelmente; mas exactamente o contrrio: o seu sentido mobilizar as foras da mudana em bem. Por isso, h que considerar completamente extraviadas aquelas explicaes fatalistas do " segredo " que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em ltima anlise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providncia e, por conseguinte, no poderia ter agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por a andam. A viso fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carcter simblico da viso: Deus permanece o incomensurvel e a luz que est para alm de qualquer viso nossa. As pessoas humanas so vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitao inerente viso, cujos confins esto aqui visivelmente indicados. O futuro visto apenas " como que num espelho, de maneira confusa " (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no texto do " segredo ". O lugar da aco descrito com trs smbolos: uma montanha ngreme, uma grande cidade meia em runas e finalmente uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da histria humana: a histria como rdua subida para o alto, a histria como lugar da criatividade e convivncia humana e simultaneamente de destruies pelas quais o homem aniquila a obra do seu prprio trabalho. A cidade pode ser lugar de comunho e progresso, mas tambm lugar do perigo e da ameaa mais extrema. No cimo da montanha, est a cruz: meta e ponto de orientao da histria. Na cruz, a destruio transformada em salvao; ergue-se como sinal da misria da histria e como promessa para a mesma.
Aparecem l, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco (" tivemos o pressentimento que era o Santo Padre "), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e posies sociais. O Papa parece caminhar frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E no so apenas as casas da cidade que jazem meio em runas; o seu caminho ladeado pelos cadveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violncia, destruies e perseguies. Nesta imagem, pode-se ver representada a histria dum sculo inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha e da cidade e esto orientados para a cruz, assim tambm os tempos so apresentados de forma contrada: na viso, podemos reconhecer o sculo vinte como sculo dos mrtires, como sculo dos sofrimentos e perseguies Igreja, como o sculo das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No " espelho " desta viso, vemos passar as testemunhas da f de decnios. A este respeito, oportuno mencionar uma frase da carta que a Irm Lcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: " A terceira parte do "segredo" refere-se s palavras de Nossa Senhora: "Se no, [a Rssia] espalhar os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguies Igreja. Os bons sero martirizados, o Santo Padre ter muito que sofrer, vrias naes sero aniquiladas" ".
Na Via Sacra deste sculo, tem um papel especial a figura do Papa. Na rdua subida da montanha, podemos sem dvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, comeando de Pio X at ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste sculo e se esforaram por avanar, no meio deles, pelo caminho que leva cruz. Na viso, tambm o Papa morto na estrada dos mrtires. No era razovel que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do " segredo ", tivesse l identificado o seu prprio destino? Esteve muito perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvao com as palavras seguintes: " Foi uma mo materna que guiou a trajectria da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da morte " (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido l uma " mo materna " que desviou a bala mortfera demonstra uma vez mais que no existe um destino imutvel, que a f e a orao so foras que podem influir na histria e que, em ltima anlise, a orao mais forte que as balas, a f mais poderosa que os exrcitos.
A concluso do " segredo " lembra imagens, que Lcia pode ter visto em livros de piedade e cujo contedo deriva de antigas intuies de f. uma viso consoladora, que quer tornar permevel fora sanificante de Deus uma histria de sangue e de lgrimas. Anjos recolhem, sob os braos da cruz, o sangue dos mrtires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mrtires so vistos aqui juntos: o sangue dos mrtires escorre dos braos da cruz. O seu martrio realiza-se solidariamente com a paixo de Cristo, identificando-se com ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Col 1, 24). A sua prpria vida tornou-se eucaristia, inserindo-se no mistrio do gro de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mrtires semente de cristos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim tambm a morte das testemunhas fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a viso da terceira parte do " segredo ", to angustiante ao incio, termina numa imagem de esperana: nenhum sofrimento vo, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mrtires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. No se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mo amorosa de Deus como Lzaro, que encontrou a grande consolao e misteriosamente representa Cristo, que por ns Se quis fazer o pobre Lzaro; mas h algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma fora de purificao e renovamento, porque a actualizao do prprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficcia salvfica.
Chegamos assim a uma ltima pergunta: O que que significa no seu conjunto (nas suas trs partes) o " segredo " de Ftima? O que nos diz a ns? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que " os acontecimentos a que faz referncia a terceira parte do "segredo" de Ftima parecem pertencer j ao passado ". Os diversos acontecimentos, na medida em que l so representados, pertencem j ao passado. Quem estava espera de impressionantes revelaes apocalpticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da histria, deve ficar desiludido. Ftima no oferece tais satisfaes nossa curiosidade, como, alis, a f crist em geral que no pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece - dissemo-lo logo ao incio das nossas reflexes sobre o texto do " segredo " - a exortao orao como caminho para a " salvao das almas ", e no mesmo sentido o apelo penitncia e converso.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do " segredo " que justamente se tornou famosa: " O meu Imaculado Corao triunfar ". Que significa isto? Significa que este Corao aberto a Deus, purificado pela contemplao de Deus, mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espcie. O fiat de Maria, a palavra do seu Corao, mudou a histria do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graas quele " Sim ", Deus pde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um corao humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a ltima palavra. O que vale desde ento, est expresso nesta frase: " No mundo tereis aflies, mas tende confiana! Eu venci o mundo " (Jo 16, 33). A mensagem de Ftima convida a confiar nesta promessa.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito da Congregao
para a Doutrina da F
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O atentado e o 3 segredo de Ftima
A Igreja surpreendeu o mundo no ano 2000 quando foi revelado o terceiro segredo de Ftima que em 1917 foi apresentado aos trs
pastorinhos de Ftima. Segundo a anlise do Vaticano, o segredo est relacionado ao atentado contra o Papa. Curiosamente, os disparos contra o Santo Padre foram feitos em 13 de
maio, dia de Nossa Senhora de Ftima. O Sumo Pontfice sempre afirmou que a Virgem Maria teria desviado as balas.
Durante sua visita ao Santurio de Ftima, o Papa rezou diante da imagem da Virgem e, em seguida, ofereceu a Nossa Senhora de Ftima um anel, que recebeu do Cardeal Stefan Wyszynski, no incio do seu pontificado. Outra homenagem que o Santo Padre prestou Virgem de Ftima, ocorreu alguns anos aps o atentado de 1981, quando decidiu entregar a bala que ficou no jipe, para que fosse guardada no Santurio. Segundo o relato do Cardeal ngelo Sodano, por iniciativa do bispo daquela diocese, a bala foi incrustada na coroa da imagem de Nossa Senhora de Ftima.
Referncias:
https://sampaio.jor.br/nomeiodenos/edic22/2210maio.htm
(Sampaio Assessoria de Comunicaes)
https://piox.org.br/destaque141003.html
(PioX.org.br)
https://cruzgloriosa.com.br/aparicoes/revelacao3.htm
(Cruz Gloriosa)
Complementos:
- Mensagem de Nossa Senhora de Ftima aos
trs pastorinhos
- Reportagem da poca sobre as aparies
de Nossa Senhora - Jornal "O Sculo", Lisboa (edio
da manh) 37 (l2.876) de 15 Outubro de 1917, p. 1, cols. 6-7; p.
2, col. 1.-
- Homilia do Santo Padre em 13/05/2000
- Canonizao de Francisco e Jacinta
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